segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Lição de Antropologia




O fato é que, em algum momento da luta entre as duas tribos, as omas se extinguiram, desapareceram da face do planeta. Deviam ser frágeis demais, etéreas, delicadas. Com certeza é da lembrança atávica das omas que se originaram certas figuras da mitologia grega: as sílfides, as ninfas, as nereidas.

Naturalmente, esse processo de extinção fez aumentar a rivalidade entre as tribos. Sem suas fêmeas, os machos da tribo das omas se tornaram mais agressivos.
Em toda parte, os mulhos foram sendo extintos por esses machos da tribo inimiga. Simples conseqüência da seleção natural, da lei da sobrevivência do mais forte.

E, durante alguns anos, os sobreviventes de ambas as tribos se examinaram desconfiadamente. Por fim, concluíram que teriam que se ajustar uns aos outros, ou simplesmente deixar de se reproduzir.
Afinal, não existem mulas? Resultado do cruzamento entre jumento e égua, ou entre cavalo e jumenta, as mulas são estéreis. Mas não foi isso que aconteceu neste caso, como resultado do cruzamento entre as fêmeas de uma espécie e os machos de outra: foi como se, em vez de um produto híbrido, o resultado desse cruzamento simplesmente produzisse novos espécimes iguais ao pai ou à mãe, perfeitamente sexuados e capazes de reprodução ad infinitum.

Sem suas suaves omas, os homens vêm há séculos em busca da companheira perfeita.
Criadas para serem servidas e protegidas por seus dóceis mulhos, as mulheres não se conformam em se submeter aos homens, fisicamente mais fortes.
Condenados à coexistência, homens e mulheres, predadores por natureza, digladiam-se tentando inutilmente chegar ao entendimento.

Quem pode entender uma mulher?

Quem pode entender um homem?

Quem pode compreender essa coisa fascinante, o sexo oposto? Quem pode compreender essas criaturas incompreensíveis?

No princípio havia homens e omas, mulheres e mulhos.

É a única explicação possível: que homens e mulheres não sejam macho e fêmea do mesmo bicho.

sexta-feira, 30 de março de 2012

VAMPIROS NA BIENAL

Na Bienal, a jovem escritora passa pelo nosso stand entregando convites para a sessão de autógrafos de seu livro de contos, que se realizará dentro de meia hora. Distribui as filipetas entre as pessoas presentes e deixa um montinho em cima da escrivaninha a que estou sentada.

Uma senhora se aproxima de mim, com o convite na mão.

– “Um Vampiro Atrás da Porta” – lê, com cara de desgosto. – Por que você acha que ela deu esse nome para o livro?

– Não sei ...

Ela insiste:

– Você acha que ela deu esse nome só pra aparecer?

Parece realmente indignada. Contemporizo:

– Não... Deve ser o título de um dos contos.

– Um conto sobre vampiros?

– Metaforicamente, talvez...

– É uma brincadeira? Será que ela não sabe que ninguém deve brincar com isso? Será que é um livro infantil?

– Acho que não. Ela escreve para adultos. Já li contos dela, são muito bons.

– Porque, você sabe, crianças adoram essas coisas de vampiros, desde que fizeram aquela novela...

– É verdade.

(Não estou com ânimo para discutir.)

Ela prossegue:

– Você não acha um absurdo fazerem novela com vampiro?
– É só ficção...

– Mas eles existem, sabia?

Fiz uma cara interessada.

– Existem vampiros vivos e vampiros mortos –, ela asseverou.

– É mesmo? Pensei que eles não morriam.

– Algumas pessoas mortas voltam à Terra como vampiros... daí não morrem mais.

– Ah!

A gente aprende tanto, em uma tarde na Bienal...

– Tem um paciente no hospital em que eu trabalho que é vampiro –, ela contou. – Acho que ele nem sabe disso.

– Como pode não saber?

– Às vezes eles não sabem. Quando são sugados ainda muito pequenos, esquecem. Passam a sugar os outros e nem percebem.

– Mas... ele morde o pescoço dos outros?

– Não! – ela se aborreceu com minha ignorância. – Não precisa morder. Eles sugam a energia da gente.

– Ah, é verdade, tem gente que se aproveita dos outros...

– Não é disso que estou falando! Estou falando de dreno de energia. Sabe o que é isso?

– ... Não...

– Não tem gente que te suga? Que te deixa exaurida?

– Hum...

Fiz uma cara de dúvida. E ela:

– Mas agora eu aprendi a me proteger. Eu via que todos os que lidavam com aquele paciente estavam ficando doentes... Médicos, enfermeiras... Todos! Aí resolvi me proteger. Agora só lido com ele com a mão esquerda.

– E funciona?

– Claro! Ele só pode sugar a energia da gente pela mão direita. Se eu não encostar a mão direita nele, estou protegida.

– Ah!

– Tem uma mulher no meu prédio que também é vampira. Ela era viciada em psicotrópicos e dormia o dia inteiro. Mas quando estava dormindo saía do corpo e ia nos apartamentos dos vizinhos.

– Ia?!

– Um dia percebi que ela estava no meu apartamento. Eu estava vendo TV, distraída, e de repente senti a presença dela.

– Como você percebeu?

– Ora! Como que um cego percebe quando tem alguém na sala com ele? Foi assim, do mesmo jeito. Eu sou sensitiva. Mas na hora em que eu senti a presença dela, peguei o desodorante e fiz assim: tsschhhhh! Bem em cima dela!

Encenou o gesto, empunhando um desodorante imaginário e dando uma sprayzada com o indicador. Arregalei os olhos:

– Puxa!

– E sabe o que ela fez, na hora que eu taquei o desodorante nela?

– O que que ela fez??

– Ela mora bem em frente do meu apartamento, a janela do quarto dela dá pra minha sala. Ela abriu a janela do quarto e deu um grito assim: AAAAAAAAH!

Gritou bem alto. Arregalei mais os olhos. Algumas pessoas que passavam diante do stand nos olharam, curiosas.

– Depois, quando encontrei ela no corredor do prédio, sabe o que aconteceu?

Eu ia arriscar o palpite de que a tal mulher estaria com cheiro de desodorante. Ainda bem que eu não disse essa bobagem. A sensitiva continuou:

– Quando ela passou por mim no corredor do prédio, ela gritou de novo: AAAAAAAAH! Porque lembrou que fui eu quem jogou o desodorante nela...

– Que coisa...

– Pois é. Desde aquele dia ela mudou completamente. Agora ela acorda cedo e vai à igreja todo dia. A igreja lá dela... porque é católica fanática.

Eu diria “fervorosa” em vez de fanática, mas é questão de vocabulário. Concluí:

– Ainda bem que você tinha um desodorante à mão...

– Pois é...

Com esta conclusão filosófica ela se foi, que a Bienal era grande e havia muitos stands a visitar. Mas não deve ter ido à sessão de autógrafos de Um Vampiro atrás de Porta.

(publicado no Bar do Escritor em outubro de 2008)